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Foto do escritorCarol Bernardo e Tamires Alcântara

A quem pertencem nossas cidades?

No dia 22 de dezembro de 2022, foi derrubado o veto do então presidente Jair Bolsonaro ao projeto de Lei 488/2021, que veda o emprego de técnicas de arquitetura hostil em espaços livres de uso público. Promulgada pelo Congresso Nacional, a lei nº 14.489/2022 leva o nome de Padre Júlio Lancellotti, cidadão paulistano, pedagogo, presbítero católico, conhecido por sua dedicação às causas sociais. Classificada como “lei de ocasião”, quando criada a partir de fatos que mobilizaram a opinião pública, acresce ao artigo 2º do Estatuto da Cidade o inciso XX:


Art. 2º […]

XX – promoção de conforto, abrigo, descanso, bem-estar e acessibilidade na fruição dos espaços livres de uso público, de seu mobiliário e de suas interfaces com os espaços de uso privado, vedado o emprego de materiais, estruturas, equipamentos e técnicas construtivas hostis que tenham como objetivo ou resultado o afastamento de pessoas em situação de rua, idosos, jovens e outros segmentos da população. ” (NR).


A arquitetura hostil, como se convencionou chamar, é um conjunto de dispositivos construtivos que têm como objetivo impedir a permanência de pessoas, especialmente daquelas em situação de rua, em bancos de praças, espaços residuais em fachadas e demais áreas livres do espaço público. Uma ideia ultrapassada, pautada na especulação imobiliária, onde acredita-se que a remoção dessas pessoas valoriza o entorno e, consequentemente, aumenta o valor dos imóveis da região, a chamada gentrificação.


Arquitetura hostil (Charge de Armandinho)

Se a base da arquitetura é o abrigo e o ofício do Arquiteto e Urbanista é justamente propor espaços de bem estar e acolhimento, impedir o uso de espaços públicos é, definitivamente, uma anti-arquitetura. Embora esse debate no Brasil tenha ganhado força apenas nos últimos anos, essa prática está presente em diversas cidades mundo afora, com a instalação de cacos de vidro, pedras, barreiras, peças pontiagudas e outros elementos que hostilizam o usuário e reforçam a mensagem de que “esse lugar não é para você”.


Padre Júlio Lancellotti, da Pastoral do Povo de Rua, em viaduto da Zona Leste de São Paulo onde foram instalados blocos de pedra pela prefeitura (Foto: Reprodução / Instagram)

Além de não resolver a complexa questão das pessoas em situação de rua, a arquitetura hostil influencia na relação do indivíduo com o espaço público e impede que seus equipamentos sejam plenamente utilizados, afinal, uma simples atividade como sentar em um banco para descansar e desfrutar da sombra de uma árvore é prejudicada pela inserção desses elementos. Sem a liberdade de utilizar os espaços públicos todos nós perdemos, nossas cidades tornam-se mais frias, agressivas e excludentes, nossas praças e calçadas são apenas locais de passagem.


Padre Júlio Lancellotti em viaduto da Zona Leste de São Paulo (Foto: Reprodução / Instagram)

Floreiras foram instaladas na fachada de banco em Curitiba para impedir que pessoas em situação de rua utilizassem o espaço abaixo da marquise (Foto: Reprodução / Instagram)

Era fevereiro de 2021 quando circularam pelas redes sociais imagens emblemáticas do Padre Júlio retirando a marretadas as pedras que foram instaladas sob os viadutos Dom Luciano Mendes de Almeida e Antônio de Paiva Monteiro, na Zona Leste de São Paulo. A repercussão do caso chamou atenção para o tema e fez com que a prefeitura retirasse os equipamentos.


Ações parecidas também aconteceram no ano passado, no dia 12 de dezembro, quando Padre Júlio e alguns voluntários retiraram blocos de concreto que afugentavam a população em situação de rua no acesso da biblioteca Cassiano Ricardo, no Tatuapé, na mesma região da ação anterior.


Qual a mensagem nossas cidades transmitem? A quem pertencem essas cidades quando espaços públicos não podem ser utilizados por todos?


A divisória do banco da praça restringe o seu uso e impede que pessoas em situação de rua possam utilizá-lo para descansar (Foto: Divulgação/ Flickr)

As cidades tornam-se pouco acolhedoras, construídas para os automóveis e sendo pouco desfrutadas pelos pedestres, onde a população acaba privilegiando espaços privados de uso coletivo, como os shoppings, por exemplo. São cada vez mais raros os lugares onde possa ser aproveitado “o ócio pelo ócio”, ver o tempo passar sem a pressão de consumir nada.


Somos reduzidos a consumidores, onde quem não compra nada não é bem-vindo.


Um espaço público hostil não resolve problemas urbanos, pelo contrário, apenas os intensifica. A solução efetiva passa por questões muito mais profundas como o enfrentamento à desigualdade social, à violência, o déficit habitacional, dentre outros aspectos.


A cidade é o território onde conflitos e diferenças acontecem, reflexo da sociedade que a constrói ao longo do tempo. Se a cidade é violenta e segregadora, é provável que a estrutura social também o seja.


Nossas cidades estão mais preocupadas em esconder os conflitos do que em solucioná-los. Isso nos faz lembrar dos grandes paredões construídos ao redor de condomínios da elite para proteger quem está de dentro e segregar os que estão fora, mas isso é assunto para outro artigo. Temos muito o que questionar!


Voluntários quebram a marretadas pedras instaladas na fachada da Biblioteca Cassiano Ricardo, Zona Leste de São Paulo (Foto: Arquivo Pessoal/Rodrigo Jalloul)


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